Centenário do Prof. Dr. Fernando Gentil

Centenário do Prof. Dr. Fernando Gentil. Hoje fui pego de surpresa ao ler uma postagem de um médico no WhatsApp que faço parte dos ex-médicos do hospital AC Camargo de São Paulo.

Centenário do Prof. Dr. Fernando Gentil

Centenário do Prof. Dr. Fernando Gentil. Hoje fui pego de surpresa ao ler uma postagem de um médico no WhatsApp que faço parte dos ex-médicos do hospital AC Camargo de São Paulo. https://www.jornalopcao.com.br/colunas-e-blogs/imprensa/o-medico-brasileiro-que-revolucionou-o-tratamento-do-cancer-de-mama-85838/. Um grande brasileiro, exemplo para uma geração.

Com certeza, muitos dos que lá labutam hoje em dia não sabem das histórias de homens que começaram a verdadeira história do hospital em seus primórdios. Muitos colegas fantásticos e abnegados que deixaram suas marcas, que a história simplesmente não poderá apagar. O hospital na época era quase que uma família, onde todos se conheciam e zelavam pela excelência da prática oncológica.

Prof Dr Fernando Gentil
Prof Dr Fernando Gentil

 

País sem história

Infelizmente, vivemos num país sem história, onde não são enaltecidos os feitos de muitos brasileiros, sejam pessoas do povo ou de com ícones de uma geração. Alguns realizaram marcos da história na oncologia brasileira. Esses são os verdadeiros brasileiros que devem ser enaltecidos e não os que não prestaram nada ao avanço da sociedade para o progresso desse país. Alguns ilustres desconhecidos que trabalharam no completo anonimato. E olha ainda que existem muitos destes por aí.

Vejam o que escreveu o Dr. Sálvio Pinto (a quem eu reputo como o maior urologista brasileiro, que trabalha em Fortaleza. Mas, prestem atenção ao seu nome, um urologista desde seu nascimento, um predestinado).

Centenário de um grande médico cirurgião – 1921-2021. Postado em 15/01/21.

Acima de tudo, um ser extraordinário.

 

Centenário de Nascimento

Hoje comemora-se o centenário de nascimento do Professor Dr. Fernando de Campelo Gentil, médico, cearense oriundo de tradicional família local. Formado pela Faculdade de Medicina da Praia Vermelha em 1942, no Rio de Janeiro.

Primeiro médico brasileiro a realizar residência médica formal em Cirurgia Oncológica no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, de Nova Iorque. Ao término da residência foi convidado pelo Dr. George T. Pack (um dos maiores cirurgiões oncológico do mundo) para ser seu assistente no Memorial e no Pack Medical Group. De volta ao Brasil, foi um dos pioneiros de ensino da Cirurgia Oncológica no Hospital AC Camargo, hoje Cancer Center Hospital, onde formou centenas de especialistas espalhados por todo Brasil e América Latina. Depois, foi convidado pelo idealizador do hospital o Prof. Antônio Prudente, seu fundador.

 

A família Gentil

Estudioso e inovador foi idealizador de várias técnicas cirúrgicas na oncologia, tendo se consagrado com a cirurgia conservadora para o câncer da mama (Operação de Gentil). Casado com a americana Ellen Bunker Gentil teve quatro filhos: Fernando, Eduardo, Patrícia e Cecília. Faleceu precocemente em 1989 aos 68 anos. (Por Dr. Sálvio Pinto)

Grande lembrança e todos ficamos muitos satisfeitos e saudosos por esta postagem. Contudo, gostaria de relatar alguns episódios da minha convivência com esse profissional, a que reputo como meu melhor amigo que pude conviver ao longo de anos no início da minha carreira. Jamais poderei esquecê-lo. Quanta saudade.

 

Professor da Disciplina de Oncologia da PUC de Campinas

Eu comecei a frequentar o AC Camargo desde o meu quarto ano da Faculdade de Medicina na PUC de Campinas em 1979. O conheci por que na época, a minha Faculdade seria a primeira no Brasil a ter um curso de Oncologia na sua programação de formação médica, na recém-licenciada Faculdade de Medicina da Universidade. Naquela época, a abertura de uma Faculdade de Medicina não é a brincadeira que hoje vemos, as formalidades e exigências eram enormes. O coordenador do curso futuro de Oncologia foi designado pelo Prof. Gentil, seria o Prof. Dr. Américo Marques. Médico-cirurgião obstinado pela perfeição, a quem devo muito da minha formação inicial na cirurgia que no futuro acabaria seguindo.

O primeiro contato com o Prof. Dr. Fernando Gentil foi para que ele promovesse um Curso de Extensão Universitária na PUC de Campinas. De imediato aceito meu convite. Nesta época era responsável pelo departamento científico do Centro Acadêmico Samuel Pessoa. E o curso se concretizou e foi um sucesso por aqueles que participaram. Muito orgulho por receber os chefes e médicos experientes de cada Departamento do Hospital AC Camargo. Mal eu sabia que um dia seria um dos seus médicos. Ainda promovi um outro curso no ano seguinte.

Com essa proximidade tive a oportunidade de participar do Centro de Pesquisas no AC Camargo com alguns estudos médicos-cirúrgicos durante o meu curso médico. Esta experiência abriu minha mente para a prioridade da pesquisa médica.

 

Serviço de Urologia do Departamento de Cirurgia Pélvica

Fui formalmente convidado para ser urologista e reestruturar o Serviço de Urologia do Departamento de Cirurgia Pélvica pelo Dr. Fernando Gentil, pois nesta época dois eram seus titulares e que já se encontravam em fase de aposentadoria, o saudoso Dr. Francisco Glicério e seu assistente. Tinha nesta época recém terminado a formação de Urologia em 1987 e antes desta a de Cirurgia Geral. Cheguei ao hospital em 1989.

Inicialmente tive que aprimorar meus conhecimentos da cirurgia oncológica e pude entrar em inúmeras cirurgias oncológicas na Pelvis, nome carinhoso que todos se referiam ao departamento. Nossa, era uma honra ver aqueles cirurgiões experientes realizarem malabarismos cirúrgicos. Os residentes trabalhavam felizes e sem tempo para que fossem cumpridas todas cirurgias. Nada de vamos deixar para amanhã. Tudo faziam, e o difícil se tornava fácil nas mãos habilidosas dos cirurgiões do Serviço. Quantos ensinamentos e que riqueza incomensurável. Tive que estudar como nunca para poder fazer parte daquele time fantástico.

 

Os protocolos de tratamento

Durante este período passei a estruturar os protocolos de todas as doenças oncológicas referentes a Urologia. Tarefa nada fácil. Nesta fase, já tinha todo o apoio do Prof. Fernando Gentil. Por outro lado, por ser o membro mais novo do staff da Pelvis, era monitorado por todos os médicos pertencentes não só a Pelvis, mas de todos titulares do AC Camargo. Quantas vezes a noite fui a sua casa para discutir e desenhar os protocolos dos tratamentos que seriam implantados na Pelvis. Na sua casa havia uma biblioteca enorme, na qual eu mergulhava em aprendizado. Muito legal participar desta experiência.

Tive que aprender os princípios da cirurgia oncológica, que de certa forma já tinha um certo verniz recebido pelo curso de Oncologia durante a Faculdade de Medicina. Vejam a importância de um curso de qualidade na formação estudantil. Chegava as 7:00 h e saia ao final das cirurgias, na maioria das vezes depois das 21:00 h. Detalhe, tudo isso sem ganhar nenhum centavo. Foram nove meses nesta vida, recém-casado e ganhava algum como cirurgião geral concursado na Prefeitura de São Paulo, entrando na sexta a noite em plantão de 24 horas.

 

Conselhos de um amigo

Neste começo, sempre com aquela voz calma e altiva o Dr. Fernando  Gentil me disse: “Você pode fazer o que quiser no Departamento, mas se alguma coisa acontecer de errado, eu quero ser o primeiro a saber”. Imaginem só um chefe falar isso para você, um novato, e a responsabilidade ficou enorme. Felizmente, nunca em minha vida tive que anunciar algo espinhoso.

Em quantas cirurgias oncológicas entrei, centenas. Quantas vezes não vi a seguinte cena proferida pelo Dr. Gentil: “Menina, vá no meu armário e traz uma prótese para reconstrução mamária desta paciente”. Detalhe, a paciente era do SUS. Portanto, sendo sua, essa prótese era fornecida por ele, sem ônus a paciente. Quanta gentileza e o prazer de ajudar ao próximo. Só pensava em oferecer o melhor. Realmente eram outros tempos. Poucos têm essa atitude, o ser humano acima de tudo.

 

Os tempos mudaram

Hoje, tudo gira pelo dinheiro e vivemos com enormes dificuldades em lidar com os convênios. Acabou a Medicina pela Medicina. Honorários aviltantes e os convênios comandados por administradores de empresa. Portanto, dura realidade, pessoas que nem sabem o que é Medicina. Portanto, com certeza é isso que hoje praticamos, onde você é simplesmente um número e sem que alguém o valorize pelos seus bons trabalhos. Inclusive poucos pacientes conseguem entender estas coisas que cercam seu tratamento.

Contudo depois de uns nove meses, em reunião de Discussão de Casos Clínicos, sem eu esperar, o Prof. Dr. Fernando Gentil me colocou para ser o cirurgião principal de uma cistectomia radical. Nossa, quanta honra e responsabilidade. Fui para casa estudar tudo o que podia sobre Cistectomia, pois sabia que no dia seguinte teria uma grande missão “operar esta cirurgia de grande porte sem provocar nenhuma complicação ao paciente”. Apesar de tudo venci, mas já havia de certa forma amadurecido na cirurgia oncológica com os exímios cirurgiões que faziam parte do Departamento de Cirurgia Pélvica. Nossa quanto aprendizado e parece que foi ontem.

 

Passagens memoráveis

Foram inúmeras as passagens que me impactaram, mas o respeito e nossa amizade só fazia crescer. Quantas vezes me pediu para avaliar um paciente seu para que possamos discutir a conduta cirúrgica. Lá ia eu e no retorno um bate-papo franco sobre as evidências do caso. Sempre me questionava por que não fazer de outra forma. Não final sempre era feito o que era considerado o melhor para o paciente. Isso me enchia de orgulho e sabia que não poderia decepcioná-lo. Procurava fazer o melhor.

Um certo dia, já mais solto em minhas obrigações, ele me telefonou a tarde e me disse: “Estava falando com o Professor Dr. William Fair, chairman do Serviço de Urologia do Memorial Sloan-Kattering Cancer Center, e disse que eles estavam realizando cistectomia radical com reconstrução com neobexiga ileal”. Então deu uma risada e ele falou “Do que você está rindo?” e respondi: “Tenho estudado esta cirurgia há 6 meses e estou procurando o caso ideal para realizá-la”.

 

A primeira Cistectomia e Neo-bexiga do AC Camargo

Passados 15 dias, estava realizando esta cirurgia, a primeira do hospital. Neste dia ele estava ocupando quatro salas do centro cirúrgico, todos pacientes particulares. Entrou na minha sala lá pela 13:00 h e disse: “O que você está operando?” Respondi: “Estou realizando aquela cirurgia que conversamos”, então ele ficou quase louco: “Deixe-me ver” e respondi: “De jeito nenhum e com meu corpo cobri o campo operatório brincando com ele”. Nossa, senti sua enorme alegria e felicidade por estar sendo feita aquela cirurgia em seu Serviço. Lição do caso, vibrar pelo teu sucesso e da equipe. Poucos fazem isso quando são chefes e quantos não colocam dificuldades para que membro da equipe fique patinando e que permaneça sem brilho. Realmente é isso que habitualmente vemos em muitos serviços no nosso país. Pura mesquinhez e incompetência.

 

O pós-operatório

Quanto ao pós-operatório vou uma loucura aos membros do hospital, pois saia canos por todos os locais do abdômen do paciente: dois cateteres ureterais em cada rim, saindo por transfixação da neobexiga ileal através da parede abdominal, uma cistostomia, um dreno na cavidade abdominal, sonda vesical na uretra, sonda naso-gástrica e mais os acessos vasculares. Ninguém entendia o que era aquilo pois era uma novidade e tanto. Aos poucos foram sendo tirados todos os drenos e sondas. Para minha surpresa, o paciente evoluiu bem e ficou continente e potente. Como assim, na primeira cirurgia? Como não sabia realizar aquela cirurgia, fiz uma hemiprostatectomia com adenomectomia distal em seu terço médio para proximal e sem saber preservei a banda neurovascular, daí o resultado feliz.

Este paciente tinha 48 anos de idade e ao longo da vida teve uma 15 recidivas vesicais, onde fez tudo o que se conhecia de tratamento adjuvante naquela bexiga, de quimioterapia e BCG intravesical. Sua doença começou aos 14 anos de idade numa cidade do interior. Nunca entendi sua etiopatogenia. Uma verdadeira história da evolução do tratamento do câncer vesical não músculo invasivo. Pura sorte de principiante, mas com certeza muita ajuda espiritual esteve comigo naquele dia. O Dr. Gentil não se aquentava de felicidade e assim realizei muitas outras.

 

O desafio de uma cirurgia

Certo dia, por onde ia no hospital vinha um recado para eu ir ver um paciente internado que nem sabia do que se tratava. Nesta época, o Prof. Gentil já era falecido. Quem internou foi o Dr. Arthur de Souza e Sá, um dos mais técnicos e habilidosos cirurgiões que conheci, assistente do Dr. Gentil. Dois outros cirurgiões indescritíveis foram o Dr. Salim Zequi Garcia e o Dr. Silvio Santos Cavalcanti.

O que ocorreu, seu irmão por telefone conversando sobre sua dificuldade urinária disse que seria operado de HPB. Como o Dr. Arthur, chamado de Tutuca, era muito conhecido da família Gentil, o convenceu para vir a São Paulo para que ele fosse operado pelo jovem urologista que era muito amigo do seu irmão. Não deu outra, pegou o avião de Fortaleza e se internou no AC Camargo. Nesta época eu trabalhava demais e só às 14:00 h pude conhecer o paciente, que nem sabia do que se tratava. Lá chegando a surpresa, ele era irmão do Dr. Gentil. Nossa, não acreditei.

 

RTU de próstata com 100g

Vi o caso e era uma próstata enorme, quase umas 100g e resolvi realizar uma RTU de próstata apesar de não estar 100% experiente nesta época. Vou tentar. Fiz o máximo que pude e deu certo. No dia seguinte a tarde, um telefonema dizendo que estava com retenção por coágulos. Pedi para remover a sonda e quando cheguei ao hospital, lembro-me, pois era um sábado e estava montando meu segundo consultório na avenida Faria Lima, com 35m2. O paciente estava confortavelmente sentado, sem sonda e disse que urinou alguns coágulos e que agora estava tudo bem. Pois então, deixei-o continuar assim e tudo dei certo.

Conversamos muito sobre seu irmão e neste dia queria por que queria acertar a cirurgia. Ele estava internado como paciente particular. Então lhe disse: “Meu caro, seu irmão foi o melhor amigo médico que já tive, e você acha que seu irmão iria ficar contente por eu te cobrar alguma coisa de você? O que ele vai me dizer quando eu encontrar com ele? Esqueça, pois apenas cumpri com minha obrigação”. Nada adiantou, no dia seguinte seu filho voltava para Fortaleza e ele veio se despedir de mim e disse: “Isso que te deixo é apenas um agrado e colocou no meu bolso um envelope”. Nossa, terminei todo meu consultório e ajudou a comprar algum mobiliário. Continuamos nos falando, sempre me enviava lagostas e depois perdi seu contato.

 

AC Camargo, um hospital diferente

Realmente, o AC Camargo era um hospital diferente, e quanta força e energia tinha em todas suas dependências. Pessoas incríveis e que grande experiência adquiri. Mas as coisas mudaram e agora existe uma outra história que não sei dizer no que vai dar. Logicamente, o espírito amigável e familiar do hospital acabou.

O Dr. Gentil entendia que estamos de passagem por esta vida. Era homem religioso e aos domingos sempre participava de culto religioso. Era católico, mas nunca conversamos a este respeito.

Lembro-me de ter recebido um telefone às 2:30h dizendo sobre seu falecimento. A minha noite acabou e que tristeza se abateu sobre mim. Que pena, ainda tínhamos muito a realizar. A saudade e as muitas lembranças felizes, bate-papos e discussões são inesquecíveis. Realmente, a vida é uma passagem e temos que saber vivê-la, mas a retidão dos nossos passos, estes não podem ser aviltados. Depois da sua morte, o hospital começava a seguir outro rumo.

Professor Doutor Fernando de Campelo Gentil, um ser extraordinário. Idealizador de muitas técnicas e inovações na Oncologia. Que outros jovens cirurgiões possam seguir os seus passos, certos que assim devemos ser como homens e médicos.

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